200 anos de cultura alemã em Santa Maria: descendentes ainda preservam a tradição e os costumes germânicos

No cotidiano de José Carlos e Elaine Einsfeld, 65 e 63 anos respectivamente, a cultura alemã se manifesta na música, nas lembranças de infância, no chucrute servido no almoço e até no baú pintado à mão pelos antepassados que decoram a sala de estar. O dialeto alemão, até os seis anos, era a única forma que José aprendeu a se comunicar. Na escola, descobriu o português e outras culturas mundo afora. Mas, dentro de casa, a cultura alemã sempre se manteve viva na religião, nas músicas tocadas pelo pai na gaita de boca e na comida. Até hoje, a tradicional chimia precisa ser aquela feita em casa, que tem o gostinho de infância.

O alemão trouxe na sua bagagem o seu conhecimento, sua bíblia, sua fé religiosa. Também trouxe o instrumento para tocar e cantar. Tanto que existem hoje associações que cultivam exatamente isso – afirma José Carlos.

José Carlos e Elaine ainda preservam a cultura alemã em Santa MariaFoto: Beto Albert

O casal teve um papel fundamental na criação do grupo folclórico Immer Lustig, em 1984, que ainda mantém viva a cultura alemã, mesmo dois séculos após o primeiro contato dos imigrantes com Santa Maria. O intuito foi viabilizar encontros e lembrar os velhos bailes de interior. Mais do que isso, enraizar uma tradição que atravessa gerações da família Einsfeld e hoje se manifesta também nas três filhas do casal.

– Nossas filhas eram um toquinho de gente e viviam muito a cultura na casa dos meus pais. O pai botava música alemã e elas amavam. Colocavam os vestidos e dançavam. Sempre foi assim. E o pai com a gaitinha… E elas vivenciaram tudo isso. O mesmo aconteceu na minha infância. Sempre cultuamos muito a música e a dança dentro de casa.

O casal preserva nas fotos os tempos de apresentação no grupo folclórico Immer Lusting, que ajudaram a fundar em 1984Foto: Beto Albert

A história da imigração alemã que atualmente se manifesta na casa do José Carlos e da Elaine teve início na Europa, mais precisamente em um mosaico de países que anos mais tarde formaria a Alemanha. No século 19, quando ocorreu o fluxo migratório, o Brasil era recém independente e a Europa passava por um processo de modernização das relações de trabalho. Por isso, conforme o doutor em história pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Carlos Eduardo Piassini, a imigração foi resultado de um interesse mútuo. De um lado, existiam pessoas que não tinham onde trabalhar na Europa, pela densidade populacional, e o estímulo à migração para diminuir os problemas sociais. Do outro, no Brasil, um território que tem a necessidade de ocupar e desenvolver o país.

Resultado da política do governo Europeu, os primeiros 39 imigrantes alemães chegaram em São Leopoldo em 25 de julho de 1824 – data símbolo dessa parte da história do Rio Grande do Sul. A partir disso, se estabelecem, criam raízes e ocupam também outras partes do estado. Ao longo do século 19 e 20, foram fundadas mais de 80 colônias alemãs.

– A partir de São Leopoldo, que é um caso de sucesso de colônia alemã, eles vão se espalhando no sentido de vir outros mais e a fundação de várias outras colônias em várias regiões aqui do Rio Grande do Sul. Desde o litoral, em Torres até aqui na Região Central. Assim, formam-se mais de 80 colônias ao longo do século 19 e 20.

O historiador esclarece que os objetivos dos imigrantes mudaram ao longo do tempo. Se hoje os descendentes buscam pela manutenção das heranças e costumes, em 1824 o propósito era estimular a pequena propriedade rural que, na época, impulsionou o mercado interno e diversificou a economia local. Também buscavam a proteção do território que, na época, ainda era alvo de disputa. 


A cultura que chega e permanece em Santa Maria

Há 200 anos, muito antes da criação de versos como “Jetzt Get´s Los, Jetzt Get´s Los” que embalam as festas típicas alemãs, a imigração teve início em Santa Maria. Por ser uma cidade de origem militar, os soldados são a primeira presença alemã, antes mesmo de 1824. Aqui, criaram família, desenvolveram o comércio e viram a presença dos imigrantes se intensificar a partir do século 19. 

O chucrute é uma tradição da culinária alemã ainda preservada nas casas santa-mariensesFoto: Beto Albert


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Em 1858, quando Santa Maria foi emancipada, está a prova da influência dos imigrantes no local. Conforme Piassini, descendentes de famílias alemãs, especialmente de grandes comerciantes, ocupavam cargos importantes na política. Vereados da época como João Pedro Niederauer e Maximiano José Appel inspiraram até nomes de ruas em Santa Maria:

Muitos dos primeiros vereadores eram de origem alemã porque eles tinham muito status econômico e status social. Assim, duas semanas após o início da imigração conseguem se inserir na política e várias legislaturas seguintes sempre vão ter nomes de origem alemã atuando aqui em Santa Maria. 

Vereados da época como João Pedro Niederauer e Maximiano José Appel inspiraram até nomes de ruas em Santa MariaFoto: Beto Albert

Para se organizar e manter viva a tradição, os imigrantes formavam associações econômicas e de recreação. Em 1866, por exemplo, foi fundada a Deutscher Hilfsverein, conhecida atualmente pela sigla SOCEPE - Sociedade Concórdia Caça e Pesca. Clubes de atiradores e grupos de dança também eram costumeiras formas de diversão e lazer.

Os imigrantes souberam aproveitar o território central. Fizeram daqui um ponto de referência de comércio e até hoje é uma frente muito importante. Também contribuíram com a questão da coligação religiosa, tanto católicas, quanto protestantes – afirma o historiador.

Um símbolo dessa contribuição religiosa está na construção da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil. Conforme os pesquisadores, a igreja foi a primeira e única da época no Brasil a ter autorização de bater os sinos. Isso porque, nos anos 60 do século 19, o catolicismo era a religião oficial. Logo, outras manifestações eram proibidas. Mais do que um monumento histórico e espaço de memória, o espaço também abriga a cultura que se manifesta no grupo folclórico Immer Lustig, vinculado à Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil. É o mais antigo grupo folclórico germânico na região central do Estado e um dos mais antigos do Brasil.

Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil, localizada na esquina das ruas Coronel Niederauer e Barão do TriunfoFoto: Beto Albert


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